Dr Pedro Melo

Por anos mulheres ficaram presas entre a cesariana por falta de opção e a realidade de partos violentos e sem segurança. Mas muita coisa mudou!

parto humanizado

Histórico da Assistência Obstétrica no Brasil

O parto humanizado ainda é algo novo para muitas mulheres brasileiras. Entre interpretações românticas e outras vilanizadas, muito ainda se precisa divulgar para que a compreensão acerca do tema tenha mais proximidade com a realidade. E para entender melhor do que se trata, precisamos voltar atrás algumas décadas.

No final dos anos 90, as mulheres brasileiras se deparavam com um cenário difícil quando buscavam assistência obstétrica. Por um lado, taxas alarmantes de cesarianas (em alguns contextos acima de 90%), deixando claro que o desejo de um parto normal estava fora de perspectiva. E por outro lado, relatos negativos e por vezes catastróficos de experiências de partos normais repletos de intervenções, muitas das quais desnecessárias e perigosas, gerando nascimento traumáticos para mãe e bebês. Pra quem buscava se aprofundar mais no assunto as más notícias não paravam: índices de complicações obstétricas e mortalidades materna e neonatal elevadas, muito acima do que é esperado. 

O Programa Nacional de Humanização do Pré Natal de Nascimento

Frente ao cenário em que nos encontrávamos, no início do anos 2000, o governo federal instituiu através da Portaria/GM n.o 569, de 1/6/2000, o Programa Nacional de Humanização do Pré Natal e do Parto, que tinha como pilares:

  • Concentrar esforços no sentido de reduzir as altas taxas de morbimortalidade materna, peri e neonatal registradas no país; 
  • Adotar medidas que assegurem a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto, puerpério e neonatal;
  •  Ampliar as ações já adotadas pelo Ministério da Saúde na área de atenção à gestante, como os investimentos nas redes estaduais de assistência à gestação de alto risco, o incremento do custeio de procedimentos específicos, e outras ações como o Maternidade Segura, o Projeto de Capacitação de Parteiras Tradicionais, além da destinação de recursos para treinamento e capacitação de profissionais diretamente ligados a esta área de atenção, e a realização de investimentos nas unidades hospitalares integrantes destas redes. 

Fundamenta-se então nos preceitos de que a humanização da Assistência Obstétrica e Neonatal é condição primeira para o adequado acompanhamento do parto e do puerpério. O programa compreende basicamente dois aspectos:

  • A convicção de que é dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém nascido
  •  Adoção de medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompa- 6 nhamento do parto e do nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias, que embora tradicionalmente realizadas não beneficiam a mulher nem o recém nascido, e que com frequência acarretam maiores riscos para ambos

Percebe-se assim que o movimento da Humanização parte de uma necessidade e uma exigência das mulheres brasileiras e que evolui para um programa federal do Ministério da Saúde. Os objetivos claramente não se destinam única e exclusivamente a aumentar o número de parto vaginais no país. A transformação é mais profunda e mais essencial do que isso. Redução da mortalidade, redução das complicações, melhoria dos desfechos materno-fetais, mais acolhimento e melhores condições de atendimento: é isso que a Humanização tem como pilares.

A Produção de Conhecimento Faz Parte da Humanização

Apesar de ser um fenômeno brasileiro, a renovação das técnicas de assistência obstétrica acontecem no mundo inteiro e serviram como fundamentação teórica para a implementação da humanização.

Não são poucos os estudos que reviram práticas e desconstruíram mitos na obstetrícia. A manobra de Kristeller mostrou-se perigosa e associada a traumas ao concepto e tornou-se proscrita na medicina, hoje sendo considerada má prática e violência. A episiotomia foi revista aos olhos da ciência e perdeu seu lugar, não sendo mais praticada por muitos profissionais da humanização.

A Organização Mundial da Saúde publicou em 2018 as Recomendações de Cuidado Intraparto para uma Experiência Positiva de Nascimento, um marco teórico que reforça, baseado em evidências, o que os profissionais da humanização defendem como boas práticas. Em 2022 a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) em parceria com o Ministério da Saúde a Diretriz Nacional de Assistência ao Parto normal, que segue referenciais teóricos semelhantes ao documento anterior da OMS. Ambos os documentos trazem a assistência humanizada, definitivamente, para o campo da ciência.

A Humanização do Parto no Cinema

No ano de 2013 é lançado no mercado cinematográfico brasileiro, após um fenômeno recorde de crowdfunding, o filme O Renascimento do Parto. Retratando a realidade obstétrica no Brasil de maneira crítica, o filme conta com depoimentos de mulheres anônimas, celebridades e especialistas na área médica. O impacto do filme é enorme: em seu ano foi o documentário nacional com a 2ª maior bilheteria nos cinemas do país, com mais de 30 mil espectadores, percorrendo 50 cidades durante 22 semanas.

Impactos na Assistência Privada

Assim como a vida imita a arte, frequentemente a assistência privada imita a assistência pública. Seguindo exigências populares e espelhando-se nas transformações vigentes no Sistema Único de Saúde, surgem então novas possibilidades na assistência privada. Um número maior de profissionais, vindos de programas de treinamento mais alinhados com a assistência humanizada, chegam ao mercado privado oferecendo uma assistência diferente. Respeitando as escolhas das gestantes, ainda que para um público privilegiado, essas equipes levam para dentro dos hospitais particulares modelos de assistência menos intervencionistas e mais acolhedores. 

Não demora muito pra que essas instituições percebam o aumento da demanda por estruturas hospitalares que contemplem esse público feminino e passem também por transformações. Surgem então as salas de parto humanizado com controle de luz ambiente, disponibilidade de banheira e maior tolerância técnica às práticas da humanização. As equipes dessas instituições têm também suas práticas modificadas para valorizar e garantir privacidade, acolhimento e respeito às usuárias.

A Multidisciplinaridade Chega à Assistência Obstétrica

Como discutido acima, faz parte das práticas humanizadas, enxergar a gestante como um sujeito complexo e com necessidades humanas complexas. Nesse sentido, depositar todo o saber da assistência a essas mulheres apenas na medicina se mostra insuficiente. Outros profissionais são então convidados a participar na assistência e na produção de evidências científicas em torno da assistência pré-natal, ao parto e puerpério.

Doulas, enfermeiras obstetras, obstetrizes, fisioterapeutas, acupunturistas, fotógrafas são algumas das profissionais que passam a se envolver ativamente nos cuidados à gestação e ao parto e ampliam como nunca antes a capacidade de abrangência dessa assistência, durante tanto tempo restrita a médicos. 

A entrada de doulas nas maternidades, por exemplo, torna-se direito garantido por lei em alguns estados, garantindo às mulheres assistência multidisciplinar. Muitos hospitais públicos e privados, montam equipes de enfermagem obstétrica para atendimento aos parto de risco habitual, deixando as equipes médicas concentrarem-se nos atendimentos de alto risco.

O que Significa Escolher um Parto Humanizado?

A humanização na obstetrícia tem como objetivo maior uma maior segurança ao parir. Nada é mais importante que isso. A necessidade de redução no número de intervenções surge principalmente do aumento de risco e complicações oriundas dessas práticas, especialmente quando aplicadas sem qualquer indicação. A via de parto vaginal, com o mínimo de intervenções possíveis, é, em condições habituais, a via que melhor contempla segurança e benefícios. 

Vejam que em momento nenhum, o programa de humanização fala da via de parto vaginal como um objetivo em si. É sempre como um meio de reduzir as complicações cirúrgicas de cesarianas sem indicação.  E saber indicar bem uma cesariana e realizá-la com habilidade e presteza é também parte da prática de um obstetra humanizado.

Nenhum profissional verdadeiramente alinhado com a humanização, vai forçar um parto ou obrigar uma mulher a viver uma experiência traumática para ter um parto vaginal. Isso não é humanização. A experiência da  mulher no parto vem logo em seguida à segurança, e deve ser respeitada ao máximo. Mesmo quando as condições encontram-se propícias, é direito da mulher interromper a evolução do parto normal e solicitar a realização de uma cesariana.

Claro, em se tratando de uma equipe humanizada,  parte-se do princípio que durante o pré-natal aquela mulher construiu seu desejo de um parto natural e com o mínimo de intervenções. Uma boa equipe saberá oferecer mecanismos de alívio da dor (farmacológicos ou não), encorajar, acolher os medos e inseguranças até que fique bem claro que não há mesmo como seguir.

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